quarta-feira, 13 de maio de 2009

Era bela esta montanha, sob o signo do Inverno, bela não de um modo suave e agradável, mas sim como o deserto selvático do Mar do Norte é belo sob um vigoroso vento do Oeste. Não havia, na verdade, estrondo de trovões; pelo contrário, reinava um silêncio mortal, que no entanto despertava sentimentos muito próximos do recolhimento. (...) Por meio do funicular atingiu, sobre os esquis, Schatzalp, onde, transportado a dois mil metros de altura, se pôs a vaguear calmamente através da neve poeirenta, sobre faiscantes planos inclinados, que em dias claros ofereceriam uma vista extensa e sublime da paisagem das suas aventuras.
Regozijava-se com os novos recursos que lhe abriam zonas antes inviáveis e aniquilavam quase todos os obstáculos. Envolviam-no com a desejada solidão, a mais profunda que imaginar se possa, uma solidão que enchia o coração de um afastamento distante dos homens. Havia ali, por exemplo, um precipício coberto de pinheiros, que se perdia na cerração da neve, e do outro lado subia uma vertente rochosa com enormes massas de neve, ciclópicas, arqueadas e curvadas, que formavam cavernas e calotes. Quando Hans Castorp parava, a fim de não se ouvir a si próprio, o silêncio era absoluto e perfeito, e o menor vestígio de som era como que abafado, um silêncio ignoto, jamais sentido, que não existia em nenhum outro lugar. Nenhuma brisa, por mais leve que fosse, roçava as copas das árvores; não se ouvia nenhum sussurro, nenhum pio de pássaro. Era o silêncio primitivo, aquele que Hans Castorp contemplava ao deter-se assim, apoiado no bastão, com a cabeça inclinada para um dos ombros e a boca entreaberta. E suave, incessantemente, a neve continuava a cair, a cair tranquilamente, sem um ruído.
Não, este mundo, no seu silêncio insondável, não tinha nada de hospitaleiro; admitia o visitante por sua própria conta e risco. Na realidade não o recebia nem acolhia, mas apenas lhe tolerava a intrusão e a presença, sem se responsabilizar por nada. A impressão que despertava era a de uma ameaça muda e elementar, nem era sequer uma hostilidade, mas uma indiferença mortal. O filho da civilização, que pela sua origem fica mais alheio e distante desta natureza selvagem, é mais sensível à sua grandeza do que o seu rude filho, que dela depende desde a infância e mantém com ela relações de uma familiaridade calma e banal. Este, mal conhece o temor religioso com que aquele, arregalando os olhos, a enfrenta. Esse temor forma o âmago de toda a relação sentimental entre os filhos da civilização e a natureza, e faz constantemente vibrar na sua alma uma espécie de perturbação religiosa e de inquieta emoção. Hans Castorp, com o seu blusão de lã de camelo, de mangas compridas, com as grevas e os esquis de luxo, sentia-se no fundo muito audacioso ao contemplar assim este silêncio original da natureza selvagem e silenciosamente agressiva do Inverno, e a sensação de alívio que experimentava, quando, de regresso, as primeiras habitações humanas reapareciam através da atmosfera velada, tornava-o consciente do seu precedente estado de espírito e instruía-o sobre o terror secreto e sagrado que, durante horas, lhe dominara o coração. Na ilha de Sylt, de calças brancas, seguro, elegante e respeitoso, detivera-se à beira da formidável rebentação como diante de uma jaula de leões, atrás de cujas grades as feras mostrassem a boca aberta com as suas presas terríveis. A seguir banhara-se, enquanto um guarda advertia, por meio de um toque de corneta, aqueles que temerariamente procuravam franquear a primeira onda, a fim de se aproximar da ressaca que se revolvia na sua direcção; e o derradeiro golpe daquela catarata ainda feria a nossa nuca como uma patada de fera. Naquela região, o jovem travara conhecimento com a entusiástica felicidade dos ligeiros contactos amorosos com potências cujo abraço pleno seria fatal. Mas, o que nunca experimentara era a veleidade de levar esse inebriante contacto com a natureza mortífera ao ponto em que estivesse iminente o abraço pleno, e a fascinação de penetrar, débil mortal que era, apesar das armas e do equipamento sofrível que lhe fornecera a civilização, esse monstruoso mistério, ou, pelo menos, nunca conhecera o desejo de evitar a fuga até o momento em que a aventura se abeirasse do perigo e os seus limites se tornassem independentes da vontade humana, o momento em que já não se tratasse de espumas lançadas à praia e de leves pancadas com a pata, mas sim da própria vaga, da fauce, do mar.
Numa palavra: Hans Castorp mostrava coragem ali em cima -se é preciso entender por coragem em frente dos elementos, não um sangue frio obtuso na sua presença, mas o dom de si, consciente, e o triunfo sobre o medo da morte, obtido por meio da simpatia. Simpatia? Com efeito, Hans Castorp simpatizava com os elementos, no íntimo do seu frágil peito civilizado, e existia certa ligação entre essa simpatia e a nova convicção da sua dignidade, que o invadira diante do aspecto daquela turba a brincar com os seus trenós, e lhe apresentara como desejável e conveniente uma solidão mais profunda e grandiosa, menos provida de um conforto de hotel, do que aquela que se encontrava no seu compartimento de varanda. Fora daí que contemplara as cristas envoltas em brumas e a dança da tempestade de neve, e envergonhara-se, no fundo da sua alma, de ser mero espectador abrigado atrás do parapeito da comodidade. Era por isso -e não por um capricho desportivo, nem tão-pouco por um prazer físico e espontâneo- que aprendera a usar os esquis. (...)
Com as pernas salpicadas de neve, apoiando-se nos bastões, ia escalando alturas brancas semelhantes a lençóis, cujos lanços se elevavam em forma de terraços, cada vez mais altos, que conduziam não se sabia onde. Parecia que não levavam a parte alguma. A região superior confundia-se com o Céu, o qual mostrava um branco nevoento igual ao de eles, de modo que era impossível dizer onde começava. Não se distinguia nenhum cume, nenhuma crista. Era o nada brumoso em cuja direcção Hans Castorp avançava penosamente, e como também atrás dele o mundo, aquele vale habitado por criaturas humanas, não tardasse a fechar-se igualmente à sua vista, e como som algum chegasse dali até ele, a sua solidão, o seu isolamento tornou-se, antes que o jovem o percebesse, o mais profundo possível, tão profundo que chegou a dar-lhe aquele medo que é a condição prévia da coragem (...). Estacou e olhou em redor. Não se via nada em parte alguma, excepto alguns esparsos e minúsculos flocos de neve, que, vindos da brancura do Céu, desciam até à brancura do solo. O silêncio em volta dele era grandioso e impassível. Enquanto o olhar lhe esbarrava no vácuo alvo que o cegava, Hans Castorp sentiu como o seu coração, agitado pela subida, começava a latejar -esse órgão musculado, cuja forma animal e mecanismo vira, talvez com uma audácia criminosa, por entre os crepitantes relâmpagos do gabinete de radioscopia. E apoderou-se dele uma espécie de comoção, uma singela e devota simpatia por esse coração, o coração palpitante do homem, que pulsava, nessas alturas, nesse vazio glacial, tão sozinho com os seus problemas e enigmas.
Prosseguia no seu avanço, sempre subindo, rumo ao céu. Às vezes mergulhava na neve a extremidade superior do bastão e observava como do fundo do buraco brotava uma luz azul, que perseguia o bastão, cada vez que este se retirava. Isso divertia Hans Castorp, que podia ficar muito tempo parado a fim de reproduzir uma e outra vez o pequeno fenómeno óptico. Era uma luz singular e delicada, luz das montanhas e das profundidades, entre esverdeada e azul, clara como o gelo e entretanto sombria e misteriosamente atraente.”
Thomas Mann, Montanha Mágica

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